(autor: paulinfantem)
Trabalhando para o IBGE fui escalado para a Vila Coité, na periferia de Nova Chicago. Minha primeira visita caiu num casebre paupérrimo, coberto de sapé. Na frente da tosca habitação abundavam espadas-de-são-jorge e pés de guiné; aqui e acolá, alguns pés de arruda e comigo-ninguém-pode. Galinhas cacarejavam soltas pelo quintal. Um gato dormitava na janela da frente. Subia fumaça da chaminé e um forte cheiro de alho frito misturado com café recém coado chegava até a rua.
Bati palmas. Não tardou e fui atendido: primeiramente por um esquálido vira-lata latindo de maneira estridente, seguido de uma velhota portando uma horrível corcunda, dois dentes na frente da gengiva superior, uma cabeça toda branca e, na alegria do seu sorriso de boas-vindas, pude contemplar a tamanha tristeza de todas as suas rugas. A primeira coisa que me veio a mente foi a lembrança das bruxas das historietas de minha infância.
Expliquei-lhe o porquê de estar ali naquela hora. Amavelmente convidou -me que entrasse. Entrei. Sentei num caixote velho que serviu-me de banco. Acomodei-me colocando a prancheta sobre as coxas e comecei a preencher meus papéis... Quando ela pediu-me que esperasse um pouco, daria um pulo na cozinha para buscar um café que acabara de passar. Imediatamente afeiçoei-me a ela e pareceu-me que a simpatia foi recíproca. A velhinha era mesma tão boazinha! Como eu estava enganado nas minha primeiras impressões e como as as aparências às vezes no enganam tanto! É, gente, não tive como recusar o café, aliás, ela nem deu tempo para isso.
Como toda pessoa normal em casa alheia (se é que, com todo o respeito, se poderia chamar aquilo de casa), aproveitei para dar uma olhada geral, tomando conhecimento do ambiente. Aquilo ali exalava um fedor insuportável. Pela porta do quarto contíguo denotava-se, sob uma rústica cama, que tinha como colchão apenas uma velha esteira, denotava-se, como eu ia dizendo, fezes nadando num descascado penico transbordante de urina.
Fumaça, alho, café, urina, fezes... Esta repugnante mistura de odores mesclava o ar fétido que, infelizmente, tive que respirar naquela lúgubre choupana. A sujeira imperava em cada canto, inclusive no poleiro de um periquito que perturbava-me com o seu interminável currupaco.
Na parede um rosário circundava um quadro de Santa Luzia; ao lado um papelão de uma caixa de biscoitos segurava, coladas com arroz, fotografias amarelecidas pelo tempo. Tudo ali era tão tétrico, além daquele mau cheiro insuportável que impregnava aquele local, síntese da pobreza aliada à imundície.
Não demorou e ela voltou, surprendendo-me perdido nas minhas divagações. Portava numa das mãos um prato de ágate, que mais parecia alvo de campo de tiro de tão baleado, carregando uma caneca de alumínio toda amassda e embaçada e, na outra mão, uma lata que um dia fora de marmelada Colombo... Que droga seria aquela?... Nunca cheguei a saber, apesar de ter comido.
Peguei o café e não pude deixar de notar quão suja estava a caneca: tinha raspas de mingau não-sei-de-quê grudado no seu interior. Os bolinhos tinham gosto de tudo: eram doces e salgados, pareciam ter pimenta, alho, canela, hortelã, tudo demais, além de banha de porco rançosa.
Agüentei firme e, mesmo com o estômago se revoltando, consegui comer o primeiro. O café tinha um gosto intragável de cebola; talvez fosse da caneca mal lavada... Como tomar aquela porcaria? Mas, o que fazer? Não tive outra saída... Seria uma grande indelicadeza desprezar tamanha hospitalidade...
Tentei imaginar um jeito de afastá-la para atirar os cinco restantes ao cachorro, se é que conseguisse comê-los. Mas a velha não arredava pé, falando sem parar e nenhuma idéia razoável me ocorria... Sempre insistindo para que eu comesse todos, "afinal ficaram tão deliciosos". Se eu quisesse mais era só pedir... "Que eu pego lá dentro." Recenseador do IBGE! Em quê que eu fui me meter!
Certamente passou alguém na rua: ouvimos o pulguento latir. A coroa foi até a janela verificar o que estava ocorrendo. Aproveitei para me desfazer de alguns bolinhos. Lepidamente me levantei e consegui, com certeira pontaria, atirar dois no seu devido lugar: no urinol. Mas ainda restavam três.
Criei coragem e, para não desfeitear a idosa acabei comendo mais um, enquanto fingidamente elogiava os seus supostos dotes culinários. Ela se distraiu apanhando um retrato de um bebê qualquer para me mostrar e eu pude assim me livrar dos dois restantes, "guardando-os" no bolso da calça, mesmo sabendo que ficaria todo besuntado. A longa camisa por fora da calça encobriria a nódoa que na certa se formaria.
Eram tantas perguntas, tantos quadros a preencher. Algumas coisas ela nem respondeu, não havia meios de fazê-la entender. O documento que possuíra em toda a vida era uma certidão de casamento que o filho havia levado para o serviço, não sabia para quê. Vinha de uma família de cinco irmãos; quase dois anos mais nova que o mais velho e um ano e meio mais velha que o outro que nasceu depois. Informação completamente inútil, já que ela não sabia a idade de ninguém, nem dela mesma... Sabia apenas o dia e o mês de aniversário: dezoito de janeiro. Esquece.
Eu já estava de saída quando um lindo carrão importado, desses que só em falar parece que a gente já está todo endividado e com a língua avariada pela pronúncia, pois é, uma dessas máquinas modernas parou em frente ao portão... Sem essa de cachorro sorrindo, o que ele fêz foi recolher-se à sua insignificância... Nem um abano de rabo, uma festinha... Quem seriam aquelas gentes? O que viriam fazer ali? Nunca a minha curiosidade foi tão aguçada!
Pessoas muito bem vestidas, ostentando jóias, máquinas digitais, mp3 e outros apetrechos igualmente modernos, adentraram naquele terreiro. Um casal normal, isto é, macho e fêmea, quase na meia-idade, e seus três filhos adolescentes: uma moça, que parecia ser a mais velha, e dois rapazes. Falavam simultâneamente. "Mamãe" e "vovó" se confundiam nos meus ouvidos... "Mamãe?" "Vovó?" Quem seriam aqueles seres estranhos àquela bucólica choça? Decidi ficar mais um pouco para ver o que sucederia ali a partir daquele momento.
Fui apresentado e tive a surprendente confirmação de que ele era seu filho e os jovens seus netos. Fiquei estarrecido. Senti verdadeiro asco de conhecer esses miseráveis, desonradores da espécie humana.
Eu não podia ficar indiferente diante do abandono em que se achava aquela outrora mãe de família. Tentei conscientizá-los do que estavam fazendo com ela , argumentei que poderiam pelo menos interná-la num bom asilo, onde estaria melhor colocada, recebendo alguns cuidados... Procuravam aplacar a voz da consciência (se é que a tivessem), atenuando o coletivo complexo de culpa, justificando que ali era o seu "habitat" e que se a tirassem dali acabaria por morrer assim como morre um peixe fora d'água. Afirmaram que ela não conseguiria se adaptar...
Traziam-lhe biscoitos, doces... assim como quem visita a sua fera predileta num jardim zoológico... Mas o que ela precisava mesmo era de amor, de cuidados.
Certamente há muito não enxergava bem, tinha pouco tato e estava praticamente sem paladar. As sua forças estavam se exaurindo. Acabaria morrendo sozinha, relegada ao abandono.
Era mãe e avó, mas não tinha filho nem netos; apenas visitantes esporádicos que curtiam aquele passeio para tomar banho numa cachoeira ali perto e devorar sofregamente os frutos de algumas árvores que ainda sobreviviam naquele quintal tomado pelo mato.
Depois de me despedir daquela gente, afastei-me com o coração pesaroso, com os olhos marejados de lágrimas. Visitaria a próxima casa. Mas ainda voltarei. Tenho de fazer alguma coisa por esta cidadã brasileira!